Se Luiz Gonzaga é a síntese de uma região brasileira e
seus tempos imemoriais, o Ceará é um dos vértices dessa história; foi
para lá que ele fugiu, com menos de 18 anos, para sentar praça no
Exército, após levar uma surra de sua mãe.
“Eu
sou um caboclo feliz! Rá! Se eu nascesse de novo, eu queria ser o mesmo
Mané Luiz. Se eu nascesse de novo e pudesse escolher, mais do que sou
não queria ser. Eu queria nascer na fazenda da Caiçara, lá em Exu,
Pernambuco, mesmo na divisasinha do Ceará. É por isso que eu costumo
dizer que uma banda minha é pernambucana e a outra cearense”.
A
banda cearense de Luiz Gonzaga, como ele fala no disco Volta pra
Curtir, de 1972, é a da Feira do Crato, da passagem em carro de boi e a
pé por sobre a Chapada do Araripe fugindo da vergonha de uma surra, dos
anos de praça no 23º Batalhão de Caçadores em Fortaleza, dos estudantes
cearenses que o instigaram a deixar o choro e o tango pela música
nordestina no Rio de Janeiro, de Humberto Teixeira e a invenção do
baião.
Do
lado de cá da serra, Luiz Gonzaga deixou de ser apenas o filho de
Januário e Santana, daqui começou a trilhar o caminho que o levaria a
ser o primeiro grande astro e representante da música nordestina no
País, e ao lado de um cearense dominou por quase 10 anos, entre 1947 e
1957, o espectro radiofônico e o mercado fonográfico nacional.
No
começo da década de 1970, quando grava o LP citado acima, ele já é
consagrado como o Rei do Baião, o homem – nas palavras do músico e
professor aposentado de Teoria Literária da USP, José Miguel Wisnik –
responsável por “traduzir as culturas orais do universo agropastoril do
couro e do gado, do semiárido nordestino, para a linguagem dos meios de
massa, isto é, para o formato cancional dos auditórios das rádios e do
disco”.
Aos
60 anos então, Luiz Gonzaga já não está mais no auge de duas décadas
atrás, é rechaçado por parte da juventude pela relação amistosa com os
militares no poder, mas sua música continua em evidência nas novas
versões de artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e, sem dúvida, é
o grande ícone de uma cultura que ajudou a plasmar midiaticamente.
Continua
ele na gravação ao vivo: “Eu queria ser o Rei do Baião, mas não era
mole, não. Quando eu chegasse no Rio de Janeiro em 39, eu ia tocar na
zona violenta, da pesada, lá no Mangue, correndo pires nos gringos.
Queria ser tudo isso... Oxente! Eu queria ser o Rei do Baião! Até que
uma certa noite chegasse lá assim um grupo de cearenses, diziam que era
universitários, sei lá o que é isso! Eram estudantes mesmo! Depois de me
agradar e muito, fizeram uma exigência: ‘olha caboclo, quando a gente
voltar aqui outra vez, nesse lugar, nós só damos dinheiro a você se você
tocar um negócio lá daqueles pé de serra. Você não é sertanejo? Você
não é da serra do Araripe? Tá feita a exigência.’ Aí eu fiz uma
recapitulação.”
A
recapitulação exigida pelos estudantes cearenses é a de reaprender as
músicas de sua infância e juventude no Exu, a sonoridade peculiar do
Nordeste, com suas reminiscências medievais, com seus sanfoneiros de
oito baixos (como o era seu pai), seus aboiadores, repentistas,
rezadeiras; a recapitulação do que o escritor Mário de Andrade na década
de 1920 havia chamado de “o povo mais musical do Brasil”.
No
entanto, essa memória, que volta como eletricidade com o “Vira e Mexe”
(a música que canta para os estudantes cearenses e com a qual recebe em
seguida a nota máxima no programa de calouros de Ary Barroso) e abre uma
vereda até os dias de hoje na música brasileira, precisar ser também
reinventada. Luiz Gonzaga faz isso ao se travestir num mistura de
vaqueiro/cangaceiro e ao trocar o regional de choro pelo triângulo e
zabumba no acompanhamento de sua sanfona.
Processo criativo
A
tipografia utilizada neste caderno, projetada pelo designer Yuri
Leonardo, tem motivos inspirados em peças da sanfona (teclas e baixos)
onde a disposição das letras dialoga com a métrica sonora do baião.
Começo dos anos 1970
Quando
Gonzagão grava Volta pra Curtir, ele já é consagrado como o Rei do
Baião, o homem responsável por “traduzir as culturas orais do universo
agropastoril do couro e do gado, para a linguagem dos meios de massa”,
segundo José Miguel Wisnik
Antepassado cearense
Na
segunda metade do século XIX, Januária e Ifigênia - bisavó e avó de
Luiz Gonzaga - chegaram ao lado pernambucano da serra do Araripe fugidas
de um surto de cólera que dizimou boa parte da população da cidade
cearense. (Informações do jornal O Povo).