Quem viaja pelas estradas entre cidades atingidas
pela pior seca das últimas décadas no Nordeste se espanta com a
sequência interminável de carcaças de bovinos a apodrecer ao lado das
pistas.
A
morte de cabeças de gado, aos milhares, é, para o viajante, o impacto
mais visível e chocante da estiagem de quase dois anos que afeta 12
milhões de sertanejos de oito estados nordestinos.
Um
exemplo da mortandade está no km 533 da BR-116, quase na chegada da
cidade de Penaforte, a última do Ceará antes da divisa com Pernambuco,
na região do Cariri. À vista, na margem direita da estrada, os corpos de
seis bois e vacas representam um aviso sinistro para os passantes.
Depois dali, a quantidade de carcaças é tanta que chega a ser um
componente da paisagem, como são os arbustos cinzentos e o solo de pedra
e cactos.
São
diversos cálculos - todos alarmantes - de quantos bovinos já morreram e
vão morrer, pois antes de fevereiro de 2013 a seca não deverá acabar,
segundo previsões meteorológicas.
O
diretor de Sanidade Animal e ex-presidente do Conselho Nacional de
Pecuária de Corte (CNPC), Sebastião Guedes, estima que só neste ano o
Nordeste perderá ao menos 1 milhão de cabeças de gado por causa da seca
interminável.
"Já
tivemos secas intensas, mas, com essa intensidade, não vejo há 30 anos.
Para os pequenos produtores, a estiagem é mortal. São eles os mais
afetados", comenta o dirigente do CNPC.
Para
uma aferição mais precisa, Guedes recomenda o presidente da Federação
de Agricultura e Pecuária da Paraíba, Mário Borba, especialista e
estudioso dos vários problemas provocados pela seca no Nordeste.
Borba
é bem mais pessimista. Ele sustenta que a situação é muito mais grave
que a prevista pelo dirigente do CNPC. O presidente prevê que 20% do
rebanho bovino terá perecido em todo o Nordeste ao final do período sem
chuvas, com exceção do Maranhão, único Estado que não é afetado.
De
acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no
relatório da pesquisa Produção da Pecuária Nacional, o Nordeste tinha
29.583.041 cabeças de gado em 31 de dezembro de 2011. Os 20% de mortes
estimadas pelo pecuarista paraibano significam quase 6 milhões de
bovinos. "Nossa projeção é de que 20% morrerão; 10% serão abatidos antes
da hora, porque o dono não vai esperar o gado morrer; e 10% serão
vendidos para outros Estados, como Pará e Maranhão, por qualquer
dinheiro. Ou seja, ao fim da seca, o Nordeste terá perdido 40% de seu
rebanho, um prejuízo incalculável", disse Borba.
Tragédia animal
Embora
a visão impressione, as carcaças expostas nas estradas são uma parte
menor da tragédia animal que assola o sertão nordestino. Aqueles bois e
vacas morreram em propriedades vizinhas à pista. Por hábito, os
proprietários tiram os restos mortais de suas terras e os abandonam onde
não há dono, os acostamentos.
Nas
terras afastadas das estradas, longe dos olhos dos viajantes, a
mortandade é mais expressiva. No alto da Chapada do Boqueirão, área erma
do município de Bodocó, no sertão pernambucano, os bovinos morrem como
se afetados por uma praga.
Não
sobrou um animal do rebanho de 50 cabeças dos moradores da localidade
de Soturno, no alto da serra. A falta de água e de pasto matou todos os
bois e vacas. As carcaças ficam por ali mesmo.
"Os
bezerros a gente nem conta. Vão morrendo e a gente deixa na roça
mesmo", conta Francineide Rodrigues de Sena, de 19 anos, moradora do
sítio Logrador.
Radicado
há três anos na cidade de Salgueiro, polo econômico do sertão de
Pernambuco, o engenheiro Arão de Lavor busca comparar a seca atual com
outras ocorridas ao longo dos séculos no Nordeste brasileiro. "Antes as
secas matavam gente e bichos. Hoje só matam bichos", disse ele,
referindo-se à facilidade nos deslocamentos e no acesso a meios de
transporte, e aos benefícios e auxílios sociais, como o Bolsa-Família e
cestas básicas de alimentos, dados aos mais pobres pelos governos
federal e estaduais. Assim, a vítima da seca consegue sobreviver, apesar
da gravidade da situação.
Exceção, criador não leva carcaças à beira da estrada
Exceção
no grupo de pequenos pecuaristas do qual faz parte, Antônio Neto Lucas,
de 36 anos, se recusa a levar para a beira de estrada os bois que têm
morrido em seu sítio na margem direita da BR-122, ligação entre os
municípios cearenses da Chapada do Araripe, como Crato, e o sertão
pernambucano.
O
argumento do criador é o de não considerar correto o despejo das
carcaças em áreas públicas. "O boi morreu aqui, então aqui ele fica.
Acho errado jogar fora", disse, na manhã do dia 13.
O
sítio, chamado de Boqueirão, em referência à serra próxima, fica junto à
rodovia federal, entre os municípios de Granito e Bodocó, em
Pernambuco. Para levar os animais mortos até a lateral da pista, bastava
a Neto Lucas carregá-los por não mais que 20 metros. "O cheirinho não
está bom, mas vai ficar aqui mesmo", afirmou ele, apontando para um
bovino que apodrecia a poucos metros da casa em que vive. Ao lado da
carcaça, circulam bois e vacas com as costelas nítidas sob o couro.
O
pequeno criador já contou a morte de 15 dos 40 bovinos que tinha quando
a estiagem começou. Ele previu que mais animais não resistirão à falta
de água e de alimentos, já que a pastagem e os arbustos ressecaram. "Vai
morrer muito mais ainda. Aqui não chove há 1 ano e 8 meses", disse ele,
que não faz cálculos dos prejuízos financeiros no período. "Nem sei
isso", desconversou.
O
depoimento de Deusdete Francisco dos Santos, de 62 anos, revela outro
drama das populações sem chuva: o êxodo rural, já que as cabeças de gado
estão morrendo. Ele fala que morreu toda a criação da fazendinha em que
trabalhava, em Bodocó. "Saí de casa por causa dessa seca. Ficou ruim
arrumar trabalho por aqui. Serviço, não tem mais. Na minha idade, não
sei como será", lamentou. (Informações do Estadão).