Valente-BA O sertão virou sisal, E depois tapete



Como um contador chamado Ismael Ferreira aumentou renda e tempo de vida no Semi-Árido baiano
Ana Aranha, de Valente, Bahia

FIBRA SERTANEJA
Ismael Ferreira no meio de uma montanha de sisal pronta para virar tapete. Com a queda do dólar, agora ele mira o mercado interno
O sisal ensinou Ismael Ferreira a combater a seca. Aos 12 anos, na pequena fazenda do pai, ele começou a brigar com o solo do Semi-Árido baiano para cultivar uma das poucas espécies que resistem às longas estiagens. A planta da qual se extrai a fibra para fazer cordas e tapetes tem um curioso ciclo de reprodução. Quando pára de produzir suas folhas, o sisal se lança em direção ao céu. O pêndulo, que pode chegar a 6 metros de altura, é chamado de flecha. A haste mira as nuvens para que suas flores sejam polinizadas. Na mesma época, uma dezena de filhotes cresce a seu redor. Todos frutos da mesma raiz. Ismael cresceu na companhia do sisal, fonte de sustento de sua família e de 1 milhão de habitantes da região sisaleira da Bahia.

Aos 16 anos, deixou a cidade de Valente, a 250 quilômetros de Salvador, para estudar contabilidade em Feira de Santana. Lá, descobriu que a "sina de trabalhar muito para ganhar pouco" não era uma lei natural. Fez as contas e constatou que o único atravessador da região empurrava o valor do quilo para baixo. O mesmo acontecia no mercado da cidade, onde o preço do óleo, do açúcar e do macarrão subia mais que a inflação. Para todos os lados que olhava, Ismael via exploração. Como o sisal, ele mirou o céu. Liderou o nascimento de uma associação de agricultores que buscava uma solução para a seca, vendendo a fibra diretamente para as fábricas e garantindo um preço melhor para os produtos básicos.

Hoje, 26 anos depois, a Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira (Apaeb) compra de 1.200 produtores de sisal e lhes dá assistência. Ismael construiu uma fábrica de tapetes que exporta para a Europa e regula o preço da matéria-prima na região: o quilo do sisal valia US$ 80 em 1995. Hoje, vale US$ 680. Também administra o maior supermercado da cidade, em que o arroz e o feijão são vendidos a pouco mais que o preço de custo. Cerca de 200 produtores ainda transformam o leite de cabra em doce, queijo e iogurte.

Em apenas dez anos, de 1991 a 2000, a pequena revolução de Ismael no sertão baiano aumentou a renda da população de Valente em 50% e a expectativa de vida saltou de 56 para 64 anos, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Por todas as fronteiras que rompeu, ele recebeu o prêmio da Schwab Foundation, instituição suíça fundada pelo criador do Fórum Econômico Mundial, em Davos. O sertanejo abre os braços para contar como foram recebidos os chefes de Estado no saguão de entrada do fórum, em 2002. "Eles caminhavam sobre um tapetão da Apaeb!", diz, todo largo.

A associação emprega hoje 730 pessoas e movimenta R$ 18 milhões ao ano - 40% a mais que a Prefeitura. Quando alguém precisa de dinheiro para investir, pode recorrer à cooperativa de crédito criada pela Apaeb. A entidade mantém ainda uma casa de cultura com computadores, um programa de rádio, outro de TV, um provedor de internet e um clube com piscina, aulas de futebol e shows de artistas locais toda sexta-feira. E uma escola para 65 adolescentes de 5a a 8a série. 

TAPETES DE VALENTE 
Em vez de comprar e manter uma estufa, a fábrica usou o dinheiro para contratar 20 funcionários. Eles colocam a fibra para secar ao sol
Enquanto expandia os braços da Apaeb pelo mundo das exportações, Ismael rodou o país à procura de um modelo escolar adaptado às crianças da zona rural. Quando pequeno, ele foi um dos "meninos da roça" deixados de lado pelos alunos da escola pública só porque chegava de jegue. "A criança que mora em fazenda tem dois caminhos: ou se adapta à cidade e larga a plantação da família, ou não vai para a escola", diz. Na Escola Família Agrícola, os alunos passam uma semana em período integral assistindo às aulas que integram o currículo convencional à prática da lavoura e pecuária. A outra semana eles passam em casa, ensinando os pais o que aprenderam. "As pessoas falam do sertão como se fosse só seca e miséria. Mas nós fazemos muitas experimentações por aqui", diz Nete Jesus Silva, de 14 anos, que quer estudar agricultura para melhorar a produtividade da roça do pai. 
Como as raízes do sisal, a obra de Ismael se entrelaçou à vida da cidade de um jeito que não dá mais para separar. Desde que as exportações de tapetes caíram junto com o dólar, a Apaeb vive uma crise que se reflete diretamente no comércio de Valente. O dinheiro já não circula como antes: derrubou as vendas, aumentou os pedidos de fiado e esvaziou a feira do sábado. Liderada por Ismael, a comunidade luta quase sozinha para não voltar ao tempo em que exportava apenas retirantes para o centro do país. "Quando o real fica mais caro, isso é repassado para os tapetes, e s os europeus voltam a comprar produtos sintéticos. A Apaeb está no lucro no social e no prejuízo no econômico. E um não paga o outro", diz Ismael, que vive de suas economias desde janeiro. "A situação é grave porque nem com as ONGs européias podemos contar. Elas investem mais na África agora. E parece que as empresas brasileiras não estão muito interessadas no sertão."
As olheiras de Ismael aumentaram desde que a briga contra a seca se somou às variações econômicas que vão muito além da fronteira de Valente. Seu celular toca a cada dois minutos e a camisa pólo está invariavelmente suada. Mesmo assim, quando roda pelas ruas em sua Blazer 1999 prata, ele vai animando a cidade com buzinadas para quem passa: "Que boa vida é essa? Vamos trabalhar!" No corpo-a-corpo, faz trabalho miúdo. A senhora doente é encaminhada para a conta da associação na farmácia. O funcionário com salário atrasado tem passe livre no supermercado. E quem deixa a cisterna sem tampa leva bronca: "É dois minutos para a desgraça derrubar uma criança dentro!", diz, sempre ligeiro e econômico com as palavras. 
Moldados pela seca com a resistência do sisal, nem Ismael nem a comunidade se dobram a mais uma crise. Quando construíram a fábrica que transformou a fibra sertaneja em tapete, eles nem sequer conheciam o ramo em que se metiam. Como não podiam pagar técnicos qualificados, Ismael recorreu às instituições internacionais, de quem recebia doações. Conseguiu passagens para a Europa e, sem falar inglês, foi aprendendo no faro como o Primeiro Mundo fazia tapetes. De volta ao Brasil, adaptou os ensinamentos à realidade local. "No primeiro carregamento para a Europa, o navio saía à meia-noite. De repente, acabou a luz", conta. "Saímos catando quem passava de carro, pedindo para entrarem na fábrica. O carregamento foi feito à luz dos faróis."
Essa capacidade de quem sempre precisou improvisar para sobreviver no sertão é a única moeda com que Ismael e o povo de Valente contam para enfrentar a crise das exportações. A comunidade já elegeu os novos fregueses de seus tapetes: paulistas, catarinenses e gaúchos. E Ismael já roda atrás de um financiamento de R$ 4 milhões para investir no acabamento e em tapetes "mais elaborados e diversos" para espalhar pelos distribuidores do sul e sudeste do país. Mais uma vez, a flecha do sisal busca o céu. E Ismael Ferreira mira no mercado interno.
Ismael Ferreira enfrentou o problema crônico da seca com idéias simples e produtos da terra

Planta da seca 

Um mil e duzentos produtores vendem a fibra do sisal para a Apaeb. Eles aprendem a cuidar da plantação com os técnicos da associação
Ciclo produtivo 

A fibra do sisal é tratada em uma batedeira comunitária. De lá, vai para a fábrica, onde é tingida em cores diversas, trançada e tecida na forma de tapetes de tamanhos variados. Depois é só despachar para Salvador, São Paulo e Europa
Novidade 

Desde que a Apaeb comprou um processador de leite de cabra, 200 agricultores de Valente passaram por cursos de criação e ordenha. A associação compra 37.000 litros por mês para fazer queijos, doces e iogurtes
Sede nunca mais 

A inauguração da cisterna no povoado de Tanquinho teve discurso e aplausos. As mulheres usam os avanços trazidos pela Apaeb como argumento para convencer os maridos que migraram em busca de trabalho a voltar
Nova paisagem sertaneja 

O clube da Apaeb é aberto para todos. Além das piscinas, tem futebol, basquete e show de artistas locais na sexta-feira à noite. As mulheres tomando sol na piscina são uma cena inusitada no Semi-Árido

VIDA DE EX-RETIRANTE
Zé de Jorge e as cabras da salvação
SOLUÇÃO
Zé de Jorge mimando as cabras que o mantêm na terra
Seu Zé de Jorge (o nome de batismo, José Elias, ninguém conhece) é louco por suas cabras. Pegou o lucro do sisal e comprou 60 delas, todas em perfeita sintonia com o dono. Andam quando ele fala "vai", param quando fala "fica". Nem precisa levantar a voz. Ele se dedica ao investimento: "Não gosto de dormir na cidade porque é longe do curral", diz. Os números ajudam a entender o porquê de tamanho zelo: são 40 litros de leite vendidos diariamente para a Apaeb, somando R$ 990 por mês. Como a maioria dos valentenses, Zé de Jorge procurou a associação quando a seca acabou com sua lavoura e o fez peregrinar 300 quilômetros atrás de trabalho. Nunca mais. Em sua plantação, hoje, as sobras do sisal são espalhadas como um manto de proteção do solo ou ficam guardadas para alimentar os animais na seca. Tudo invenção da Apaeb. "Eu luto desde os 13 anos, mas só com o conhecimento descobri que cuidando ninguém passa sede e nenhum bicho morre de fome", diz.